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CAPÍTULO IV - ENCARNADO NO INFERNO
Na Terra o jovem espírito agora ganhou um corpo humano! É noite! Ele está nu e deitado no chão, num beco qualquer da cidade de São Paulo! O jovem se levanta, meio confuso com o que aconteceu! Põe a mão esquerda sobre sua cabeça, tentando entender como foi que parou ali! Percebe que seu corpo espiritual está diferente. Não emite mais luz própria! Olha ao redor e vê a iluminação pública e todos os tipos de luzes disponíveis na cidade grande: apartamentos acessos, faróis de carros que passam rapidamente por ali. Tudo reflete forte em seu rosto, fazendo-o se lembrar das luzes que o trouxeram para cá, onde agora se encontra. De repente se lembra de tudo!
Olha para a palma de sua mão esquerda, justamente aquela que tocou a superfície do lago! Tudo está claro novamente! Ele já sabe o porquê de estar aqui! Este é o Inferno humano! Tudo ao redor em nada lembra o Paraíso onde antes estava! Prédios, asfalto, casas e veículos barulhentos nas ruas. O som confuso da cidade, a multidão de novidades o incomoda demais! Dentro do beco onde se encontra, o eco de todos os ruídos ao redor se amplificam e o jovem decide sair dali! Ele tenta flutuar e nada acontece! Fecha os olhos para se concentrar e novamente nada acontece. Resolve então andar calmamente em direção à rua logo à frente! Ao sair em direção à rua, ainda com as mãos nos ouvidos, um carro vem em sua direção, buzinando forte e com o farol alto!
O jovem apavora-se, achando que aquela forte luz o levará dali para um novo mundo ainda mais inferior, muito pior do que este em que está agora! Ele acredita serem estas as mesmas luzes que o trouxeram até aqui. O veículo breca forte e desvia-se, quase atropelando o rapaz, que, por estar nu, sente o forte deslocamento de ar e o impacto das pequenas pedrinhas que machucam seu corpo. Coisa que nunca sentira antes. Tudo é muito novo! Ele se encolhe e vira de costas para se proteger dos múltiplos impactos dos pedriscos minúsculos erguidos pelas rodas do carro e lançados violentamente em sua direção! O dono do carro abre seu vidro e ainda grita:
- Sai da rua, maluco?
Logo depois o veículo acelera e vai embora, cantando os pneus. Todos os sons incomodam o rapaz: brecadas, buzinas, gritos, escapamento do carro, o cantar dos pneus...! A cidade sabe ser bem barulhenta para alguém que nunca ouviu antes algum som em sua vida! De dentro do beco surge um bêbado que vira tudo o que aconteceu e pergunta para o desnudo rapaz:
- Está tentando se matar, sujeito?
O jovem olha para ele e tenta responder mentalmente:
- Não! Não posso morrer aqui! Senão jamais voltarei ao Paraíso!
O bêbado estranha o fato do jovem estar nu e o questiona novamente:
- O que andou aprontando? Estava transando com alguém?
O jovem o olha novamente e comenta mentalmente, achando que o tal humano o está escutando:
- Não sei do que está falando! Preciso de um avental para me cobrir! O senhor tem alguma sobrando?
- Onde estão as suas roupas?
- Eu não tenho! Por isso estou pedindo a você! (responde ele mentalmente novamente).
- Olha! Eu tenho umas roupas velhas que acabei de ganhar de uma casa aqui próxima! Estão limpinhas! Você quer?
O jovem olha para ele e confirma com a cabeça que sim. O bêbado sai cambaleando para o fundo do beco e pouco depois retorna com um par de calças e uma camisa velha!
- Não sei se servirá em você, mas roupa e sapato de pobre não têm tamanho. Todas servem, não é mesmo...? De onde você vem?
O jovem olha para as roupas sem entender como irá vesti-las. Primeiro ele tenta colocar a camisa colocando-a como calça. O que obviamente não dá certo! Enquanto isso ele responde ao bêbado, ainda mentalmente:
- Eu era um espírito! Agora encarnei aqui no Inferno! Fiz besteira lá! E tenho que descobrir como retornar!
- Você não é muito de falar, não é mesmo? E também parece que nunca usou roupas antes!
O jovem olha para ele sem entender porque o tal bêbado disse que ele não é de falar, se responde a tudo o que lhe fora perguntado!
- Como eu visto isso aqui? (questiona o jovem mentalmente, mostrando a camisa ao bêbado).
O embriagado cidadão, sem nada responder, tira a própria camisa de seu corpo e a veste novamente para mostrar como se faz tal coisa.
- Ah! É assim? Obrigado! Eu nunca tinha visto nada parecido com isso antes!
- Você sabe falar? (questiona o humano que se apoia na parede ao lado para não cair de bêbado).
O jovem agora já entendeu também como é que se vestem as calças e o faz com mais facilidade. Diante da nova questão de seu amigo ele não imagina como se faz para falar e tenta emitir alguns sons com a boca. Ele abre e fecha a boca sem conseguir emitir nenhum som. Começa a caminhar em direção ao bêbado e inadvertidamente pisa numa ponta de madeira jogada ali, o que o faz soltar um grito rápido de dor.
- Aiii!
Isso o espanta, porque percebeu duas coisas novas neste momento! Ele pode sentir dor e pode também falar. Começa então a se comunicar.
- Puxa! Eu posso falar! E como dói meu pé! Por que isso?
- Você bateu a cabeça em algum lugar? (questiona o bêbado ao rapaz).
- Não sei! Não me lembro! Por quê?
- Você parece que nem é daqui! Parece que nasceu hoje!
- Você não prestou atenção ao que eu falei antes? De onde vim e o que eu fiz?
- Você não tinha falado nada até agora! Como eu iria saber dessas coisas! Afinal, estou bêbado, mas não sou surdo!
- Então você não consegue ler pensamentos?
- Você é bem esquisito, cara! Mas também... se fosse normal não estaria jogado pelas ruas! Para cá só veem os loucos, desamparados, vagabundos e desempregados! Bem-vindo ao Inferno! (comenta o bêbado que se senta no chão junto à saída do beco).
- Obrigado...! Eu acho...! (comenta o rapaz meio sem saber se o comentário foi bom ou ruim). Diga-me uma coisa! Quantas pessoas você já teve que matar aqui para continuar vivo?
- O quê? Por que está perguntando isso?
- É que me disseram que para sobreviver no Inferno é preciso matar! (declara o jovem recém-encarnado, enquanto senta-se no chão ao lado do bêbado).
- Me acontece cada coisa...! (comenta o bêbado olhando para cima). Se bem que você vem batendo todos os recordes de esquisitices...!
- Me desculpe! É que realmente hoje é o meu primeiro dia aqui no Inferno e ainda não sei como me comportar... ou o que fazer...! Estou meio perdido...! Deixe-me perguntar outra coisa: Está sabendo de algum tsunami que aconteceu recentemente?
- O jornal de ontem não disse nada! Eu nunca consigo ler o jornal de hoje! Só consigo o de ontem, quando alguém já o leu e o jogou no lixo. Quem sabe no lixo de amanhã teremos alguma informação! Mas por que a pergunta?
- Eu fiz uma besteira no Paraíso! E o que fiz pode ter causado um tsunami por aqui!
- Cara...! Você não bate bem da bola, não é mesmo?
- Cara? Bater bem... da bola?!?! O que tudo isso quer dizer?!?!
- Que você é louco!!!!
- O que é ser louco...? Aliás...! Estou sentindo algo estranho entrando pelo meu nariz! O que é isto? (reclama o rapaz do odor que vem do bêbado ao seu lado).
- O cheiro de Inferno, meu amigo!
- Puxa ninguém me falou sobre cheiros! É muito ruim! Como você aguenta?
- Isso não é nada perto de passar fome e sede!
Inesperadamente estaciona um carro grande, uma van, em frente ao beco! Dali três pessoas, sendo dois homens e uma mulher, todos usando uniformes amarelos com uma cruz vermelha na frente, descem do veículo e aproximam-se dos dois sentados no beco!
- Olááá...! Com liceeeença...! (declara a linda mulher de uniforme). Meu nome é Vanessa e pertenço à ONG Paraíso! Estou aqui para convidá-los a conhecer nossa sede, onde vocês terão tudo gratuito! São roupas limpas, alimento, água, banho, avaliação médica, remédios e um lugar quentinho para dormir toda noite!
- Você disse... Paraíso? (questiona o rapaz que acabara justamente de "vir" de lá).
- Sim! Já conhece?
- Claro! Eu vivi lá até recentemente! Você consegue me levar de volta?
- Sim! É para isso que estamos aqui! Para poder levá-los para lá! Mas se quer retornar por que saiu?
- Eu não saí! Cometi um erro e vim parar neste Inferno!
- Vamos levá-lo de volta e eu mesma quero saber o que aconteceu para que lhe tirassem de lá!
- Puxa que bom! Achei que seria muito mais difícil retornar! Foi o Guardião que a enviou até mim?
- Quem?!?! (indaga ela, estranhando a pergunta).
- Aquele de barbas brancas? Foi ele quem a enviou até mim?
A moça sorri docemente e comenta com ele:
- Acreditamos que trabalhamos para Deus em prol dos necessitados! E pensando dessa forma..., sim... foi Ele que nos enviou até vocês!
- Ahhh! Então é esse o nome dele... Deus!!! Ele só me disse para chamá-lo de Guardião?
- Você já esteve com Deus?
- Sim! Foi Ele quem me apresentou o Paraíso quando eu cheguei lá!
A moça estranha o comentário e lembra-se de um funcionário antigo do lugar que tinha barbas brancas! O tal sujeito foi um andarilho e depois que conheceu a ONG ficou vivendo por lá, trabalhando na instituição de caridade.
- Você deve estar falando do Zé!
- Zé?!?! Que Zé?!?!
- Zé foi funcionário da ONG há muito tempo! Ele tinha barbas brancas e talvez tenha sido ele quem lhe apresentou a instituição!
- Mas se ele é o Zé, por que me disse que se chamava Deus?!?! Ele não está mais lá?!?!
- Não! Passou dessa para melhor! Subiu aos céus... aquele bom homem! (declara a linda mulher).
- Ahhh! Passou para o próximo estágio espiritual? Então quem ficou no lugar dele?
- A vaga está em aberto para quem quiser se candidatar!
- Estou querendo muito retornar ao Paraíso e voltar a conversar com meus amigos animais, plantas e seres de outras origens!
O bêbado, sentado no chão ao lado do rapaz, olha para a moça, que parece não entender o que está acontecendo com o tal jovem! O embriagado homem faz o típico sinal do dedo indicador girando em círculos ao redor de sua orelha para insinuar que o recém-encarnado é meio doido! A moça agora entende melhor o que está acontecendo e o porquê dos comentários tão sem-sentido! Ela agora os convida novamente:
- E então? Vamos até lá conhecer o futuro lar de vocês?
- Claro que eu vou! (declara o jovem feliz porque pensa que irá retornar ao Paraíso).
- Tá! Eu vou conhecer o local! (declara o bêbado). Mas já vou avisando! Se eu não gostar volto pra cá!
- Quando iremos ver a luz que nos levará? (questiona o jovem à bela moça da ONG).
Ela estranha a tal pergunta novamente, mas entra no "jogo maluco" e lhe responde:
- Breve! Assim que amanhecer!
- O que é amanhecer?
O bêbado olha para cima e torce a boca, sugerindo com este gesto que está ficando difícil conviver com um jovem encarnado tão "desmiolado"! Vanessa sorri para os dois e comenta:
- Lá vocês poderão ter todas as respostas às suas dúvidas!
- É verdade, meu amigo! (comenta o jovem com o bêbado). Chegando lá procure o ser de olhos azuis! Ele é grande e meio esquisito, mas tem muitas informações sobre tudo! Consulte também as árvores! Elas me contaram coisas incríveis!
O bêbado olha para ele de forma jocosa, não acreditando em nada que dissera!
- Qual é o nome de vocês? (indaga a moça de uniforme amarelo).
- Eu sou Wladimir! (declara o bêbado).
- E você? (questiona ela ao rapaz recém-encarnado).
- Eu? Nunca tive um nome!
- Não se lembra de seu nome? (indaga, preocupada, a jovem morena).
- Lembro-me apenas de minha vida já no Paraíso! Antes disso eu vivia numa estrela e de nada me lembro deste período!
- Estrela?!?! Tá! Vou pedir para nosso médico te avaliar e descobrirmos se conseguimos encontrar a sua família! (declara ela).
Todos entram no veículo e lá dentro já se encontram mais algumas pessoas de rua. O rapaz senta-se ao lado de uma mulher toda descabelada e bem mal-vestida! O bêbado senta-se ao lado dele. A van está praticamente lotada e agora todos são levados diretamente para a sede da ONG. O rapaz puxa papo com a estranha mulher ao seu lado!
- Estou ansioso para sair deste Inferno! Este lugar me assusta!
- Satanás está por todos os lados! Ele irá pegar cada um de nós e nos queimar em seu fogo demoníaco! (responde ela).
- Satanás?!?! Quem é ele?!?! (pergunta o jovem).
- O Demo: O dono do Inferno! (responde a louca mulher). Aquele que pune nossos espíritos, inundando-os com a gasolina dos pecados que todos cometemos e ateando o fogo mais quente e cruel como só ele sabe fazer! Nem mesmo Deus tem a ousadia de aproximar-se do Inferno!
- Ninguém no Paraíso me falou que existe um Satanás por aqui! (comenta o rapaz cada vez mais preocupado em viver na Terra).
- Ele é como o próprio Deus! Está em todos os lugares! Em cada um de nós! Perto demais! A qualquer momento um pecado pode trazê-lo até você! E então será o seu fim! Jamais chegará ao Paraíso se ele te encontrar antes!
A mulher comenta tais coisas, olhando bem de perto, diretamente nos olhos do rapaz, enquanto o bêbado vira-se novamente para o céu e reclama:
- Aonde quer que eu vá sempre tem mais um doido!
O jovem, assustado com tais informações, questiona Vanessa, sentada no banco da frente com os outros dois rapazes da ONG:
- Vai demorar para chegar ao Paraíso? Não quero que Satanás nos encontre antes disso!
- Não, meu amigo sem nome! (responde a sorridente Vanessa). Estamos quase lá! É aqui perto! Mas não se preocupe! O Demônio nunca chega perto daqueles que fazem o bem!
- Preciso de mais informações! (requisita o jovem rapaz). Como alguém pode viver aqui sem matar ninguém e ainda conseguir fazer o bem, vivendo tão perto do demônio? Alguém está me enganando sobre o Inferno! As informações não estão corretas!
No banco da frente da van os três funcionários da ONG Paraíso começam a rir contidamente porque estão levando uma mulher doida e um sujeito amalucado que viveu numa estrela e conhece Deus!
Capítulo IV
Encarnado no Inferno
VOLUME
1